
Papa Don't Preach
Ano 2000. Jubileu do Papa em Jerusalém. Hordas de religiosos rumavam para a terra prometida. Desde 1964 o Papa não ia a Israel. Eu também, depois de ter morado por um ano no país, em 1982, nunca mais tinha viajado para lá e nem achei que fosse voltar.
Minha mãe morreu em novembro de 1999, não alcançou o milênio. Foi uma morte repentina, que me deixou muito triste. Cansada do stress do luto, macambuzia, como eu dizia, minha alma pesava e os dias custavam a passar.
Mátia, minha amiga, passava quase todos os meses de julho em Israel pois tem um apartamento em Telaviv. Com dó de mim, me convidou para ir com ela naquele ano. Meu marido, condoído com a minha tristeza, deu a maior força, ficaria com os nossos filhos de 05 e 08 anos.
Vi outro dia as fotos do dia da partida, meu rosto rosáceo, meio gorducha, triste. Foi a primeira viagem pós casamento e pós filhos que fiz sozinha.
Na minha adolescência na ponte área São Paulo-Rio, chegávamos com o Samba do Avião do Tom Jobim. Em Telaviv pousamos com a canção Yerushalaym Shel Zahav, maior choradeira, ainda mais em tempos de jubileu.
Mátia ainda era solteira e sem filhos. Musculada, como se diz em Portugal. Bem musculada, mignon e forte, viciada em ginástica e com um corpo todo esculpido, bem bonito.
Eu, quase vinte centímetros mais alta, gorducha, cabelo comprido, dois filhos pequenos, cara e jeito de mãe, sem praticamente nenhum músculo.
Longe da minha zona de conforto, marido e filhinhos, eu me sentia muito bocó ao lado dela. Grande, alta, desajeitada. Não sei se a tristeza do luto invadiu minhas férias, mas a verdade é que eu me sentia desconfortável quase o tempo todo e culpada de ter deixado a família em casa.
Como ela ia para Israel sempre, e em Telaviv tem praia, ela não fazia questão de nada. Era acordar, tomar café e ficar na praia o dia todo. Depois de uma semana eu surtei e ponderei. Não dá. Vir até aqui, para não fazer nada, não dá. Ela entendeu minha aflição e topou viajar. A gente saía de manhã, passava o dia fora e voltava a noite para dormir em Telaviv.
Adorei ter voltado a Jerusalém depois de tanto tempo. Por conta do Jubileu, a Cidade era uma festa sincrética e muito emocionante. Evangélicos, cristãos, ortodoxos cristãos e judeus trançando de um lado para outro na Cidade Velha.
Compramos também uma viagem de quatro dias para Rhodes na Grécia, uma ilha linda conhecida pelos resorts e pelas ruínas e pela Cidade Velha. Reservamos os dias em um hotel que pelas fotos parecia bacana.
Quando a gente chegou fiquei meio em choque. Um hotel enorme, em forma de navio, em um calor de quase 50 graus. Milhares de famílias com muitas crianças.
E eu e a Mátia.
Acho que noventa por cento do meu desconforto na viagem era minha paranoia de acharem que a gente era um casal.
Quando subimos para o quarto encontramos uma cama de casal imensa que eu fiz questão de dividir e colocar uma cômoda no meio para que pudesse separá-las. Eu detestei o hotel e aquela gente toda, apesar da Ilha, que é linda.
Superei o resort, mas até ir embora de lá, achava que o hotel inteiro não tirava os olhos da gente.
Voltamos a Israel e de lá para uma semana em Paris antes de voltar para casa.
Ficamos em um hotel no bairro do Châtelet de uma fotógrafa amiga do meu irmão, que falava português. Ela foi muito simpática. Eu e a Mátia ficamos no mesmo quarto. A gente andava muito, almoçava, dormia um pouco e saia de novo.
As vezes ficávamos conversando com ela quando ela estava na recepção.
Ela disse que tínhamos que que ir ver um quadro maravilhoso, a Origem do Mundo do Colbert, no Museu de Orsay que eu ainda não conhecia.
Fomos imediatamente. Achei o máximo ter uma amiga do meu irmão em Paris me dando dicas de lugares bacanas para conhecer. A gente entrou no museu e foi direto à procura do quadro até que o encontramos.
O quadro mostra uma mulher nua de pernas abertas, com um seio à mostra. Seu rosto não aparece, é tão cru e real que parece uma fotografia. Fiquei passada, olhei para Matia e disse:
Não falei que todo mundo nessa viagem acha que a gente é um casal?
E daí? Ela respondeu, faz diferença?
Não respondi na hora. Se fosse hoje certamente não me importaria com o que me incomodou há vinte anos. Mas, ainda não sei quando, e em que momento, a gente deixa de se chatear com o que os outros pensam de nós.