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BR 116

A BR 116 é uma estrada maldita. Conheci muitas pessoas que morreram ali. Naquela noite, depois do telefonema que recebi, chamei todos à minha casa, tentei avisá-los de uma maneira suave. Meu marido, que estava no clube com as crianças, ainda parou para comer um pão de queijo antes de vir pra casa (fui suave demais).  

 

Meu pai e irmãos chegaram logo, em menos de meia hora. Fomos de carro. Os cinco. Meu pai e meu marido na frente, eu e meus irmãos no banco de trás.

Fiquei muito brava com a demora dos meus. Minha sogra chegou para ficar com as crianças, contei a ela o que havia acontecido. Ela desandou a falar sobre casos parecidos que ela ouviu dizer, muito irritante, muito.

Finalmente todos chegaram, e fomos em direção ao hospital para onde ela havia sido levada, a quase três horas de casa.  

A estrada avançava e ela morria. A gente sabia que ela estava morrendo, mesmo sem notícias, o celular ainda era precário, e o sinal não resistiu à estrada.

 

Permaneci quieta durante o trajeto, amuada, mas vaidosa de ter organizado nossa excursão. 

Durante todo o tempo me lembrava da nossa conversa na noite anterior. Depois de conversarmos por mais de meia hora e nos despedirmos, telefonei de novo. Só pra dizer que a amava muito, e queria que ela voltasse de lá, de vez, para morar perto de nós, disse mais de uma vez: volta pra casa, mãe. 

Ela já estava morta quando estacionamos. Minha irmã viu o corpo nu, em uma maca, mandou que a cobrisse. Me ofendi com o desrespeito à sua nudez. 

Eu a vi de relance, não cheguei perto. Aproveito a parte da religião que me serve, não ver nossos mortos é uma verdade da religião judaica que eu respeito.   Tentei abraçar meu pai, mas ele travou, parecia uma parede e me lembro daquela sensação, do abraço que não chegou, e doeu, quase tanto, quanto todo aquele momento. 

Não guardei tristeza dele, meu pai nunca aprendeu a abraçar. 

Fui com o meu irmão cuidar de tudo na funerária. Dei as orientações, paguei o valor cobrado, com o cheque que havia recebido (ainda não depositado) do meu cliente bailarino bacana, pelo trabalho que acabava de fazer para ele. De novo me senti orgulhosa de mim.

Voltamos para São Paulo, o enterro seria no dia seguinte. Ela não veio com a família, voltou dentro do caixão, com o transporte da funerária, sozinha. Me arrependo muito de a ter deixado só antes do enterro. Só a encontrei no início da manhã, bem cedo, quando fui ao velório. 

Quando acordo muito cedo e saio de carro com a cidade em silêncio me lembro daquela manhã. Me vesti com a camisa verde nova, calça jeans, uma bolsa enorme tipo mochila que eu havia ganhado. Quis fazer homenagem usando a minha camisa verde linda, pois sabia que iriam cortar um pedaço da minha roupa para ser enterrada com ela. Nunca mais poderia usar a minha camisa verde, imaginei que esse seria um segredo nosso. 

Meus filhos foram no início do enterro deixar cartinhas para ela.  Aprendi naquela manhã como é o luto judaico. Cumpri rigorosamente tudo o que li no livrinho que trouxe do cemitério. 


Dentre outros rituais, separei todos os sapatos dela, os pés esquerdos em uma caixa, e os direitos em outra. Joguei todos fora. Em ruas diferentes depositei as caixas. No livrinho estava escrito que assim a alma presa à terra se desprenderia mais cedo, pois os sapatos são os que nos ligam à matéria. 

Eram muito sapatos, quase uma centena. Não ajudei ninguém, como se diz, mas quem sabe, ajudei uma alma a se encontrar, sem medo. Do mesmo modo, cobri os espelhos da casa do meu pai e os da minha também, para que a alma dela não se assustasse com a ausência da sua imagem, e, também, para que eu olhasse para dentro de mim, a despeito de toda a vaidade que eu carregava comigo naqueles dias. 
      

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